O Morgado do Bussaco, bolo nascido na opulência palaciana do Palace Hotel cercado pela serra do Bussaco, será hoje o símbolo mais presente da doçaria bairradina, tendo-se transformado num verdadeiro ícone da região e o seu mais fiel embaixador. Foi, precisamente, no restaurante Rei dos Leitões, que o Morgado renasceu para a doçaria em 2011. Adquirindo-o desde essa data na pastelaria Latina, em Aveiro, coube ao restaurante liderado por Licinia Ferreira e António Paulo Rodrigues a doce missão de lhe dar reconhecimento, divulgação e fama nacional, sendo o restaurante pioneiro a tê-lo na sua carta.
Hoje, o Rei dos Leitões já o produz na sua cozinha, pelas mãos da exímia mestre Pasteleira Lídia Ribeiro, em íntegro respeito pela receita tradicional e original que havia sido transmitida a José Francisco Silva pelo saudoso Sr. Santos, antigo director do Palace Hotel do Bussaco.
Seguindo à risca os ensinamentos e a tradicional receita que saiu dos faustosos salões do Bussaco, primeiro para a afamada pastelaria de Aveiro e, depois, para as mãos de Lídia Ribeiro, foi-nos permitido acompanhar a sua confecção que, de tão simples, se torna extremamente complexa. A elaboração dos discos ou panquecas nasce da conjugação das claras em castelo, da farinha de noz – este é o primeiro dos segredos é fundamental para a sua originalidade, não havendo adição de qualquer farinha de cereal – e do mel. Depois de batida, a massa é colocada num tabuleiro coberto com papel vegetal, formando um disco redondo. Os discos são levados ao forno durante somente 10 minutos, para solidificarem e ficarem com uma consistência crocante. Na construção do bolo, as panquecas são colocadas umas sobre as outras, sendo recheadas de ovos moles. No topo, colocam-se as nozes sobre os ovos moles e polvilha-se com açúcar em pó.
Parecendo simples de fazer, perguntámos à mestre qual é o segredo por trás da perfeição que poucos conseguem alcançar. Como o segredo é alma do doceiro, À LEI DO VINHO apenas foi revelado que a qualidade dos produtos, o tipo de mel, dos ovos e a maturação da noz são os factores fundamentais para chegar à excelência, devendo, pois, evitar-se quaisquer atalhos.
A origem do Morgado do Bussaco é, ainda hoje uma incógnita que permite que haja aproveitamentos autorais que, na maioria dos casos, carece de sustentabilidade histórica e de facto.
Há uns meses surgiu uma versão da História e Origens do Morgado do Bussaco que, não obstante a referência a diversas personagens, estimáveis com certeza, carecia de rigor cronológico e entrava em contradição com outros factos facilmente demonstráveis.
A tese assentava que o Morgado do Bussaco teria surgido como forma de substituir um doce muito famoso do Palace Hotel do Bussaco, que se havia vulgarizado. E que essa criação até era bem recente e remontava aos anos 90 do século passado.
Contudo, essa tese colide com factos que transportam a origem do agora famoso doce para algumas décadas mais atrás.
Desde logo, porque, testemunhos de pessoas com estreita ligação ao Palace Hotel do Bussaco, ainda vivas, afiançam que nos anos 70 já se servia Morgado no Palace e a receita original era detida pela D. Maria Cecília, filha de Alexandre de Almeida e proprietária da Villa Mici; no exacto ano de 1990, a Pastelaria Latina, cujo mentor obteve a receita original no Palace Hotel do Bussaco, após várias experiências com o tipo de mel, nozes e ovos a usar, iniciou a comercialização do doce. O certo é que, por razões desconhecidas, o Morgado deixou de ser servido no Palace nos finais dos anos 80 e início dos 90, tendo sido posteriormente recriado neste estabelecimento hoteleiro, mas já não com base na receita original que terá ficado na posse da D. Maria Cecília ou transmitida a terceiros.
Sendo assim, a quem devemos atribuir a sua criação?
Estávamos na última década do século XIX quando Paul Bergamim já explorava o então “Hotel da Matta do Bussaco” antecessor do Palace Hotel, concessionado pelo Estado. Para trabalhar consigo, Bergamim convidou o alemão Conrad Wissman (1859 – 1947). Wissman era, já à data, um reputado cozinheiro-pasteleiro que emigrou da Alemanha com os seus sobrinhos Maria, Hans, Frieda e Emília Wissman (1884 – 1979), esta última também com uma importância fundamental na criação e divulgação de um doce regional, o hoje nosso conhecido “Amor da Curia.,
O clã Wissman teve um papel preponderante na moderna hotelaria da Bairrada e o nome surge associado ao Palace Hotel do Bussaco, mesmo após Bergamin ter convidado Alexandre de Almeida para a sua gestão em 1916, ao Palace Hotel da Curia, adquirido por Alexandre de Almeida em 1921, e ao Grande Hotel da Curia (Villa Figueiredo), por si adquirido em conjunto com Afonso Rodrigues Costa (1875 – 1947), funcionário do Palace Hotel e que veio a casar com Emília Wissman.
A Conrad Wissman e à sobrinha Emilia associam-se então, na década de 30 e ainda 40, a criação de várias receitas de fina Pastelaria que seriam servidas no Palace Hotel do Bussaco, Palace Hotel da Curia e Grande Hotel da Curia. Emilia Weissman, criadora da receita original dos “Amores da Curia” (ou terá adaptado uma receita original do tio) também vendia os seus doces na sua Pastelaria Biju (actual café do Parque das Termas da Curia).
Estarão o Morgado do Bussaco e os Amores da Curia intimamente ligados e terão sido criados pelas mesmas personagens? Será apenas uma curiosidade, mas, no original, tanto o Morgado do Bussaco como os Amores da Curia tinham um formato rectangular, ambos têm na receita os ovos moles e teriam o mesmo tamanho.
Os vários registos de Conrad Wissman e Emília Wissman, transportam a receita original para os anos 30 ou 40 do século XX, época de glamour, fausto palaciano, mistério e personagens internacionais que fugiam dos horrores da guerra. Contudo, enquanto a neblina não se dissipa sobre a criação do Morgado do Bussaco, vamo-nos deliciando com o doce que hoje se aloja nas montras envidraçadas de todas as pastelarias da região.
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